Que venham as
farmácias!
Jornal Primeira Página, Portão, 26/07/2019
Esta semana, descendo a
Andradas, bem no centro de Porto Alegre, me surpreendi com o fechamento de mais
uma livraria. Desta vez foi a Saraiva, que funcionava entre as Americanas e as
Paulinas. Não a frequentava. Ela faz parte daquele ramo do comércio de livros
que não me interessa, vende somente o que está na “moda”, os best-sellers, os
restos de estoque de grandes editoras, os produtos estereotipados para crianças
e jovens, enfim, prefiro as confirmadas da Fernando Machado, como a Padula, a
Taverna e a Baleia. Aliás, para quem é de Portão e região, é um bom programa
para o final de semana. Viver literatura nas melhores do Centro Histórico da
capital.
Mas enfim, fechar
livrarias, como dizia, já não é algo tão raro de se ver. Na Andradas mesmo,
perto da famosa Esquina Democrática, já funcionou um fervilhante espaço
cultural, a Livraria do Globo, depois ramificada em Editora Globo, fundada em
1883. Ali, trabalharam, pasmem, Erico Verissimo e Mario Quintana. Bom, a
empresa teve seus percalços administrativos e acabou falindo. Mas, num país que
valoriza a cultura, o que se faria com um local desses? Um museu, um centro
cultural, um memorial? Acertou quem apostou numa loja de roupas e acessórios.
Talvez eu não tivesse
ficado tão chocado com o fechamento da Saraiva, já que a rede passa por sérias
dificuldades, isso é público e notório, se a placa do novo estabelecimento não
estivesse a postos. No que consiste? Mais uma... farmácia. Pensou que fosse uma
igreja evangélica, né?! Não, este seguimento prefere teatros e antigos cinemas
de bairro.
Tenho visitado diversas
escolas, como tem sido desde que me aventurei pelo viés da literatura. Neste
ano, bem menos do que em anos anteriores. Quase todo mundo tem preferido falar
de histórias de terror e suspense. Nada de abordar temas complicados como
política, ditadura militar, sistemas de poder ditatoriais, essas coisas. Aliás,
logo depois das eleições, no ano passado, a primeira visita agendada com o meu
Por trás das cortinas, foi cancelada. Eu mandei na hora uma mensagem para meu
sobrinho e meus irmãos que votaram no abominável agradecendo o feito. Recordar
é viver.
Bom, mas ainda temos
escolas corajosas, cutucando a ferida. Então, semana passada fui a uma dessas.
Tudo ia bem, até um aluno me questionar colocando em xeque a veracidade do conteúdo
do meu livro. Argumentei calmante, expliquei não ter retirado o contexto
histórico da minha cabeça. A narrativa foi pesquisada nos livros e é pensamento
comum entre historiadores, sociólogos, filósofos. Também se baseia em
depoimentos de pessoas que passaram pela experiência de serem presas,
torturadas, vilipendiadas (e eu havia acabado de assistir um bate-papo com a
escritora Maria Pilla, que sofreu tudo isso durante o regime...). Mas há a versão do capitão...
Então, diante desses cenários
de distopia social, me dei conta de que é uma realidade justificável.
Lojas de roupas e
acessórios.
Farmácias.
Igrejas conservadoras e
incrivelmente empenhadas em usar o poder político.
Do outro lado o
conhecimento, a pesquisa, a ciência e o senso crítico.
Não tá fácil, viu.
Depois dos 40
Jornal Primeira Página, Portão, 21/06/2019
Dia desses, participei de
uma feira do livro no interior do Estado. Viagem longa, oito horas dentro de um
ônibus. Lá, para não perder o hábito, dei uma espiada nos livros dos
expositores. Ando ressabiado com a qualidade das “obras” disponíveis nesse tipo
de evento, mesmo assim, fui bisbilhotar. E não é que achei perdido no meio dos
saldos o precioso: As palavras de Saramago, livro organizado a partir de
entrevistas dadas pelo nobel português. Já de cara, li na sinopse algo inquietante.
O escritor desejava que, ao morrer, uma lápide fosse colocada na sua sepultura
com o seguinte epitáfio: “Aqui jaz, indignado, fulano de tal”. Indignado por
ter morrido, lógico, e por ter entrado num mundo injusto e ter saído de um
mundo ainda injusto.
Me dei conta de já ter
vivido um bom tanto. Nos próximos dias, 43 invernos baterão à porta.
Possivelmente, metade da minha temporada por essas bandas está computada. Gente
melindrosa dirá: A medicina está avançadíssima, e eu responderei: e os mais de
160 novos agrotóxicos aprovados pelo governo só neste ano e jogados nos alimentos,
na água e no ar? Ah, mas tem uma bela aposentadoria te esperando lá na frente
para amparar a velhice... Oi?!
Mas como dizia, depois
dos 40, bate aquela angústia de não ter lido todos os livros que comprei (e
pelo visto comprarei muitos mais), não ter ouvido, assistido, visto, falado,
visitado, viajado e vivido tudo que ainda quero. E para ajudar, vem a sensação
de fracasso em ver que, mesmo depois de todas as falas, discussões, mesas,
projetos, textos e o escambau, o mundo continua cada vez mais medíocre e o país
mergulhado no obscurantismo.
Diante desse
diagnóstico, desistir parece óbvio. O pavio é curto e já queimou a meio. Mas
vem aquela esperançazinha. Atendendo ao chamado, a gente vai para a rua e vê
povo chegando de todo lado, de todas as tribos, de todas as idades, com os
mesmos ideais e, junto, a percepção de não estar sozinho. A fibra da qual somos
feitos se enrijece ainda mais e, tal vela em alto mar impulsionada pelo vento,
seguimos.
Uma festa em Poa
Jornal Primeira Página, Portão, 17/05/2019
Em sua 12ª edição, a
FestiPoa Literária homenageou a escrita afro-brasileira. A abertura aconteceu
no Salão de Atos da UFRGS, na noite do dia 29 de abril. Mais de 1500 pessoas de
tribos diferenciadas agruparam-se nas cadeiras, nas escadarias e onde mais deu
do anfiteatro com um objetivo em comum, receber a homenageada do evento, a filósofa,
escritora e ativista antirracismo, Sueli Carneiro.
Ela entrou no palco sob
ovação da plateia.
Isso não é pouca coisa
num país reconhecidamente racista, sexista e misógino.
A Literatura Afro-brasileira
passou nas últimas décadas por um período de ascensão. Não que estivesse em
declínio. Podemos remontar a textos de autores negros desde o século XVIII, com
Domingos Caldas Barbosa, por exemplo, mas faltava o reconhecimento da crítica e
a organização dos sujeitos de escrita em torno da produção e do pensar essa
literatura.
A discussão em torno do tema
ainda vai longe. As histórias que traziam personagens negras quase sempre foram
escritas por brancos. Ao tomarem as rédeas da própria narrativa, os movimentos
de afirmação da negritude se depararam com a busca por conceitos que pudessem
nortear o fazer literário no Brasil. Entre os questionamentos está a
nomenclatura dessa escrita: Literatura Negra, Literatura Afrodescendente ou Literatura
Afro-brasileira? Quem poderá escrever sobre essa temática, somente negros ou
quem se reconheça a partir desse lugar de fala?
Além da grande
homenageada da FestiPoa, Sueli Carneiro, compondo a mesa, estavam a também
filósofa, escritora e ativista Djamila Ribeiro, e a escritora e editora
Fernanda Bastos. Em suas respectivas falas, fez-se a memória do movimento negro
literário no Brasil, em fins da década de 70, a partir da publicação dos
Cadernos Negros e a dificuldade em manter-se no jogo literário nacional. A
trajetória de Sueli iniciou com a fundação do Geledés – Instituto da Mulher
Negra. Já Djamila e Fernanda, beberam dessa vertente iniciada por Carneiro.
Não foi apenas a
população negra que lotou o auditório da UFRGS e ovacionou aquelas escritoras
afro-brasileiras, mas mulheres e homens de todas das idades, de etnias
diversas, de gêneros múltiplos, numa mesma busca, pertencer a esse lugar de
fala.
Em tempos sombrios,
até dá uma esperança.Cúmplice
Jornal Primeira Página, Portão, 19/04/2019
Dia
desses, encontrei uma amiga, não direi seu nome, pois ela trabalha numa firma
um tanto melindrosa com esquerdopatas que nem nós (segundo os intelectuais do momento,
assim se define quem não é alinhado à ideologia do (des)governo). E foi aquela
conversa de dias sem se ver, cheios de novidades pra contar, pois de tédio não
se morre na atual conjuntura, sempre uma fofoca nova, um escandalozinho aqui,
um laranjal ali, e a gente vai levando, como diz o Buarque.
Em
nossos comentários bailou as coincidências envolvendo a família escolhida pelos
cidadãos de bem para governar o país, dos milicianos de estimação, das sandices
da Damares, do discurso lisérgico do ministro das relações exteriores, do
destempero do Guedes, da bagunça do MEC, das idiotices proferidas pelo Vélez,
agora substituído por Weintraub, outro lunático.
Não
deixamos de nos perguntar:
─
E o Queiróz? E os assassinos da Marielle?
E
o exército abre fogo e atinge uma família com 80 disparos no Rio de Janeiro e a
nulidade, que vive com aquele celular na cara, não tem a capacidade de se
pronunciar de forma decente. Mas bem rapidinho sai em defesa do deplorável
Gentili, que acabara de ser sentenciado em um processo movido pela Deputada
Maria do Rosário.
E
o povo dá-lhe espalhar fake news:
─
Acabar com a raça dessa defensora de bandidos.
E
é tão fácil saber quem está correto nessa história. Só ter um pouco de
honestidade e checar os dados. É assim, basta acessar aquela página colorida, o
Google, e escrever: propostas de lei de Maria do Rosário. As criaturas vão se surpreender
ao descobrir que, em matéria de segurança pública, vários projetos são de
autoria... dela. Se quiser rir um pouco, procure os projetos da filharada do
dito cujo. É um melhor que o outro.
Então,
minha amiga que não pode ser nomeada olhou bem dentro do grão do meu olho e
disse:
─
Ainda bem que a gente não é cúmplice desse negócio tão malcheiroso, né?!
Confesso
que a palavra me pegou de jeito. Fiquei matutando. Cúmplice. Fui pro
dicionário.
1. Que ou pessoa que tomou parte moral ou material em crime ou delito de outrem.
2. Conivente.
*
A segunda possibilidade de sentido se encaixa perfeitamente na hipótese
que levantamos. Não temos responsabilidade direta pela insanidade espalhada no
país. Lembrando um pouco de um passado recente, de certa forma, avisamos.
Entupimos nossas páginas do Facebook de postagens com resenhas, análises, dados
oficiais. Usamos o WhatsApp apontando, o que aí está a apodrecer o dia não é a
melhor opção, mas como concorrer com o apelo de uma mamadeira de piroca? Não
teve jeito. O resultado? Um país paralisado, sem propostas concretas para
nenhuma pasta. Um representante que só envergonha quem tem o mínimo de bom
senso a cada tuíte, a cada vociferação.
E nos permitimos um respiro de alívio.
Não entraremos pelo lado enviesado da história.
Eles têm o Fagner, a Nana, a Regina, o Ratinho, o Frota, a Paschoal, o
Kataguiri, o Nando, o Edir.
Temos o Chico, o Caetano, a Bethânia, o Frei Betto, o Boff, a Sabatella,
o Gil, a Marieta, o Martinho, a Chauí, a Pitanga, o Gregório, o Jô, o Amorim, o Bugalho, o Chomsky, a Dira, a Beth, o Jean, o Freixo, a
Melchionna, a Sâmia e nós
O nome da trama
Jornal Primeira Página, Portão, 15/03/2019
Gosto bastante de
assistir filmes.
Tá bom, gosto bem
bastante.
Tipo, além da lista dos
não vistos, tem os que amo rever.
Entre eles estão, claro,
as películas de Almodóvar. Pelo menos uma vez por ano revejo em ordem
cronológica, acompanhando a evolução do diretor, a reinvenção de cenas, a
repetição de atores, enfim, um passeio periódico pelo universo almodovariano.
Tem também os
brasileiros. Os maravilhosos Central do
Brasil, Cidade de Deus, Carandiru. E como não falar dos
clássicos, Terra em Transe, O pagador de promessas. E os picantes da
década de 70 e 80, as pornochanchadas, que, embora sem recursos, detonam com a
falsa moral da elite tupiniquim.
E agora, com a
distribuição digital de filmes, em canais bem acessíveis via internet, temos
acesso a uma infinidade de títulos, de vários lugares do mundo. Um prato cheio
para os cinéfilos.
Pois, outro dia, ouvi
falar de uma série nova e acabou me escapando o título, a procedência e o
elenco. Não consigo encontrar para assistir. Pior é que não lembro também quem
me falou dela. Ficou apenas o enredo na minha cabeça... Era fantasia pura, nada
a ver com a realidade, mas achei genial.
É mais ou menos assim:
Numa colônia perdida no globo
terrestre, um povo vivia há anos sob o jugo de um rei totalitário e cruel. Esse
monarca morava fora do país, explorando de todas as formas possíveis seus
subordinados.
Vai que um dia, o povo
desse lugar perdido no nada se revoltou e conseguiu, a duras penas, se libertar
do jugo do rei. Mas como não tiveram acesso à educação, pois foram apenas
usados durante tanto tempo, acabaram sendo governados por líderes vis.
E lá se foi o tempo
passando. O poder, sempre se alternando entre poucas famílias de abonados. Um
país desastrosamente desigual se estabeleceu.
Até que um pequeno grupo se
revoltou. Começou a sonhar com revolução. O povo, de tanto ouvir falar, começou
a acreditar, a abrir os olhos... E veio a resposta. Um duro golpe, inflexível,
torturador, aniquilador.
Os golpistas, depois de
terem se aproveitado como puderam, deixaram o país ainda mais miserável. Quando
o barco já estava à deriva, o abandonaram, deixando para trás apenas um véu de
esquecimento.
E como os machucados
precisavam curar as feridas, cada qual seguiu sua vida, imaginado que, horror
maior, era impossível. Decidiram pensar no futuro. Avante, retroceder, jamais!
O tempo seguiu seu curso.
E aquele pedaço de
continente começou a se reinventar. De repente, concluiu-se que chegara a hora
de acabar com os privilégios de poucos. Inventaram de colocar na escola quem
nunca havia estudado. Os que antes eram escravos, agora se tornavam advogados,
promotores, juízes.
E aqui começa a melhor
parte da trama.
Pois não é que,
escondidos nos esgotos do país, se formava uma quadrilha que, pouco a pouco, se
tornou poderosa?
Agora, tinha um grande
trunfo nas mãos: a tecnologia. Através dela, conseguiu tocar no que havia de
mais podre no íntimo daquele povo (lembremos que, até pouco tempo, esse povo
não tinha acesso à cultura, à educação, eram praticamente analfabetos
funcionais). Pois os facínoras foram tão hábeis que conseguiram subverter a
ordem. Iludiram a maioria da população e, com promessas espúrias de poder,
compraram as estruturas democráticas em vigor e tomaram o governo.
O mal personificado em
bem, acabou por inverter os valores. Pregava a violência como combate à
violência e, num universo quase apocalíptico de desrespeito ao diferente, todas
as vozes dissonantes viraram alvo fácil dos milicianos.
E, o mais surreal de
tudo: em nome de Deus, o ser supremo.
Então, gente, sei que
isso tudo é uma ficção barata, até banal. É quase o mesmo enredo do Harry Potter, do Senhor dos Anéis, mas eu queria acompanhar o desenrolar dessa
trama. Se alguém souber o título, elenco ou diretor dessa série, avise.
Adoro ficção.Viva, a ditadura
Jornal Primeira Página, Portão, 15/02/2019
Dia 31 de março de 2019
promete ser um divisor de águas no Brasil.
Uma empresa privada e
sustentada por assinantes produziu e estreará nos cinemas o documentário: 1964: O Brasil entre armas e livros.
Conforme chamada de divulgações, serão reveladas verdades nunca antes ditas
sobre o regime que dirigiu o país de 1964 até 1985. Entre os entrevistados
estão o filósofo autodidata (quem precisa de titulação neste governo?) Olavo de
Carvalho, do jornalista William Waack (o racista e machista demitido da Globo) e
do herdeiro da Coroa Imperial brasileira, Luiz Philippe de Orléans e Bragança
(este, tirando o folclore, a gente não sabe quase nada).
O que se busca com uma
produção destas é um revisionismo histórico, patrocinado pela nova onda
direitista, levando a maioria dos brasileiros a aceitar que a ditadura não foi
tão má assim e que a ameaça do demônio comunista bastaria para esmagar um que
outro crânio de algum jovem estudante guerrilheiro inconsequente ou de um
jornalista irresponsável e sem amor pela pátria.
Segundo pesquisa
divulgada em 2017, o brasileiro fica em 2º lugar no ranking mundial de menor
percepção da realidade. Isto é, nós, como população, não conseguimos ler os
fatos políticos, sociais, econômicos... presa fácil para lobos famintos.
Também fiz parte desse
grupo. Morando no interior, tendo como ponto de referência um único canal de
televisão, inebriado pelas novelas e pela grade pra lá de cultural, ouvindo a
mesma emissora de rádio, com suas músicas do momento e sua programação de massa,
não poderia ser diferente.
Mas algo inusitado
aconteceu.
No início da minha
juventude, caiu em minhas mãos um exemplar do livro Batismo de sangue, escrito pelo Frei Betto. Foi um choque. Nunca
imaginei que meu país tivesse uma página tão triste, e tão recente, pois,
naquele momento, fazia pouco mais de 10 anos que o regime havia acabado... Olha
o 2º lugar no ranking aí.
Mergulhei na pesquisa dessa
temática. Li Josué Guimarães, Luiz Antônio de Assis Brasil, Elio Gaspari e sua
coleção de 5 volumes sobre a ditadura. Fui atrás da obra do Juremir Machado,
com vasto material de pesquisa. Li enlutado o histórico documento Brasil: nunca mais, escrito por Dom
Paulo Evaristo Arns e equipe, ele que mergulhou nos porões das prisões dos anos
de chumbo.
Assisti o que pude de
filmes sobre o período, dentre eles, O
que é isso, companheiro?, O ano em
que meus pais saíram de férias, Zuzu
Angel, Batismo de sangue, Tatuagem. Isso para citar alguns.
Ouvi relatos, conheci pessoas
que foram torturadas, que lutaram para recuperar a democracia no país, que
foram exiladas, como o nosso querido Tabajara Ruas, testemunha viva desses
tempos.
Escuto centenas de
canções, muitas delas censuradas à época dos militares no poder.
Eu mesmo me aventurei a
escrever um livro juvenil tendo como pano de fundo o tema.
Só me falta ainda
conhecer o Memorial da Resistência em São Paulo, com enorme acervo documental,
espero que ele sobreviva aos novos tempos.
Mas tudo isso de nada
mais servirá. Tudo foi um engano, uma doutrinação efetivada por comunistas na
minha cabeça.
Um raio de lavagem
cerebral que não serviu pra nada, haja visto que, na última eleição, o
candidato esquerdista à presidência perdeu a eleição.
Tenho a impressão de que
a verdadeira doutrinação vai começar no dia 31 de março de 2019.
Dá licença, agora vou
ali descascar uma laranja.
Chega de política
Jornal Primeira Página, Portão, 18/01/2019
Entrei o ano novo
pensativo. Sei, o ato é transgressor, mas há gente com esse defeito de fábrica.
Pois, fazendo análise crítica, ainda sob o espocar das rolhas dos espumantes,
decidi deixar a política um pouco de lado. Foram muitas falas, livros, vídeos na
internet, músicas do Chico, filmes latinos, crônicas e conversas... Isso tem
que acabar.
E chegou a tarde do primeiro
dia de 2019, e eu ainda curtindo a ressaca do ano que ficou para trás. Velho de
mim, velho das coisas acreditadas por tanto tempo.
Sim, a Nova Era começou.
Presidente novo tomando posse, e aquele troço atravessado na garganta, não indo
e nem vindo. Então a pastora traduziu tudo, começava o tempo abençoado. Entendi
o mal-estar, uma espécie de parto.
E durante a primeira
semana, não foi diferente. O desfile de ministros me fez refletir o quanto
estive errado desde que me conheço por gente.
Vamos lá.
Segundo a novíssima ordem
brasileira, menino veste azul e menina veste rosa, todos podem usar laranja;
feministas são endemoniadas e feias; a terra é plana; a ciência deve estar a
serviço da religião; armas devem ser usadas pela vida; não faz mal ter um processo
administrativo nas costas se você for amigo do chefe; Olorum não fez todas as
coisas, foi Jeová; é possível trocar o perdão de um juiz por uma tatuagem; as
escolas são antros de doutrinação marxista, menos em Tupanciretã, lá não havia
nada disso, pelo menos eu nunca vi, só se as lavagens cerebrais aconteciam nos
labirintos subterrâneos obscuros da cidade; o mentor intelectual do
mito-presidente odeia a teologia da libertação e eu fui enganado de forma
brutal por essa ideologia funesta, preconizadora de um Jesus histórico, que
teria descido dos pedestais divinos para tornar-se humano e construir aqui mesmo
o Reino de Deus, tornar o planeta mais
amável, e que esse amor se traduzisse em caridade, num lugar onde tudo é
dividido: as dores, as alegrias, as riquezas, enfim, tudo tornado comum
(palavrinha perigosa). Estive redondamente equivocado.
Viva Jesus, banco
imobiliário. A tua glória está para o Estado que um dia foi laico, Aleluia!
Então, diante da atual
problemática, não falarei mais em política. Chega desses arroubos socialistas.
A partir de agora quero discorrer sobre bonitezas, experiências prosaicas,
coisinhas. Deixa ver. O que eu mais gosto mais do que política?
Censurado.
Censurado.
Censurado.
Gosto de gatos. É isso.
Escolhi minha temática.
Desde quando pensar não
era dolorido, gosto de gatos. Minha irmã mais velha tinha um, parecia um pedaço
de carvão com dois pontos amarelos e brilhantes. O xodó da casa. Claro, os
cachorros perambulavam pelo pátio, mas não me atraíam tanto quanto os felinos.
Faltava ao Sultão e ao Brasino o ar de mistério, a arrogância e a
autossuficiência tão comuns nos bichanos. Cães não são assim. Mesmo sob
maltrato do dono, basta um leve aceno e esquecem o mal feito. Tomam lambadas,
são escorraçados, lhe tolhem a liberdade, afinam o sangue, apertam a coleira, esticam
a correia, e eles continuam ali, subservientes, com o olhar exigindo piedades.
Os gatos são
independentes, fazem o que querem. E não adianta chamar, implorar, oferecer o
mundo. Se não estão dispostos, sairão andando como se não te conhecessem. Fascinantes.
Ter um gato é semelhante
ao uso do cartão de crédito. Você faz um e jura que não vai usar. Quando vê...
Está até pescoço.
Começamos com uma
filhota. Magrela, rajada, dessas bem comuns. Veio do interior. Uma ninhada de
Capela de Santana. Pensamos, ela não pode ficar sozinha. Encontramos o cinzento.
Foi abandonado com os irmãos peludos em Viamão, numa caixa de sapatos. Durante
a vacina, conhecemos o branco. Nasceu em Canoas, no bairro Guajuviras, num meio-fio.
Os irmãozinhos tinham já morrido. Saíam atrás da mãe e os carros os
atropelavam. Sobrou só ele: magro, cheio de marcas da fome e da sujeira da
cidade grande. Talvez por isso, o mais esquivo de todos. Sempre gostei de gatas
de três pelos. Conseguimos uma. E durante as pesquisas no Facebook, lemos que
os gatos pretos são pouco adotados, dizem que têm ligação com bruxaria... de
novo me lembrei da pastora ministra e, veio o quinto. Todo preto, como a noite
sem lua.
Taí. Foi bom não falar em
política. Por alguns instantes, nem pensei nos meus enganos, nos meus dilemas,
nos meus problemas. É isso, de agora em diante, vai ser assim, só bonança, só
falar de cores e amores. Escrevo enquanto a Frida, o Fidel, o Marx, a Olga e o
Ernesto dormem enroscados, sossegados.
Donos da casa e do
meu mundo.
Então é Natal!
Jornal Primeira Página, Portão, 21/12/2018
E o ano passou. Me dei
conta desse fato em visita a uma escola de Sapiranga na última semana. Foi na
sala dos professores. Num quadro de avisos, lia-se a seguinte frase “Então
é...”, seguida de duas caricaturas, uma da cantora Simone e outra do cantor Roberto
Carlos.
Não dá pra pensar em
final de ano sem o disco 25 de dezembro e sem o Especial do Rei. E, nesse
instante, me vi pensando sobre o sentido dessa data.
Na cultura Cristã, é
tempo de nascimento, de amor, de aceitação, de presentear a vida com o que vai
chegar, com o novo. Uma brecha na loucura da rotina para relembrar as
desventuras do Messias, o verdadeiro. O filho de Maria e de José, o pobre casal
bíblico fugindo dos poderosos da época, que encontraram como único abrigo para
a jovem mulher dar à luz um estábulo na periferia de Belém, não do Pará, como
já apregoou algum jogador de futebol, mas da Judéia.
Fica bonito o bebê
cercado de bois, vacas, bezerros, burricos, anjos, arcanjos, magos (e quem sabe
que outras mais potestades) nos arranjos coloridos, nos presépios das luxuosas
igrejas, na mistura com o Papai Noel de vermelhas roupas polares (muito embora
o vermelho neste ano ande meio demodê), mas se a gente pensar na vida real, no
acontecido de fato, não tem nada de glamour.
Aí, alguém falou que
agora todo mundo já estava fazendo as pazes para a ceia, daria até para encarar
aquela tia pensionista e o cunhado reaça anticomunista, os dois formados em
artigo de cinco linhas do facebook, e veio o motorista do filho do patrão e
estragou tudo.
Aí, resolvi assistir o
vídeo da palestra da ministra dos direitos tortos e, depois de quase 15 minutos
de baboseiras e insultos à literatura, pensei comigo mesmo: Ferrou. O amigo
secreto da meia-noite vai ter que ficar para o próximo ano.
Aí, ainda com a voz da
pastora incitando à histeria coletiva, avisando que agora era a vez da
mitologia dela tomar conta da política, termino pedindo para Deus, Jeová, Javé,
Gaia, Zeus, Alfadur, Oxalá, Orixás, Brahma, Shiva, Vishnu, Jesus, Espírito
Santo, Virgem Maria, Santos e Santas, Tupã, Entidades da Floresta, Mãe
Menininha do Gantois, Chico Xavier, Andersen, Noel Rosa, Machado de Assis...
Estou apelando para tudo,
se alguém estiver aí em cima, dai-nos energia para o que 2019 nos reserva.
Axé. Amém. Saravá. Assim
seja!
Livro Livre
Jornal Primeira Página, Portão, 16/11/2018
E a Feira do Livro de
Porto Alegre chegou à 64ª edição. Sob os jacarandás floridos, centenas de
bancas esperam os amantes desse objeto tão emblemático, o livro. Tem de tudo:
editoras, publicações de universidades, sebos, livrarias, espaços para
oficinas, bate-papos com escritores, contação de histórias e gente por todos os
lados.
Um clima bom.
A gente merece, né?! Depois
das insanidades eleitorais dos últimos meses. Arejar as ideias com pessoas de
todo tipo e que partilham de um desejo comum, mergulhar nesse universo de
palavras, pensamentos, imagens, enfim, ouvir vozes diversas.
É bom saber que não se
está sozinho.
Alguns casos isolados de
homens e mulheres um tanto alterados de vez em quando quebram essa harmonia. Em
todos eles, uma característica em comum, a ameaça de que os livros deveriam ser
queimados.
Quem gosta de História,
não consegue deixar de pensar, já vi esse filme antes...
Mas por todos os cantos
da Praça da Alfândega há um lembrete, expresso pelo slogan da feira: Livro
Livre. Não deve ser puro acaso essa abordagem em tempos tão bicudos. Talvez um
recado para a administração pública que, no início do ano, enviou uma fatura
cobrando a utilização do espaço e também sucateou o maior programa de leitura
da cidade, o Adote um escritor, ou se a frase apresenta tons proféticos, por
mais que se torture, amordace e cale, ideias não cabem numa prisão.
Seja o que for, fica o
convite para aproveitarmos esse espaço ainda democrático. Até domingo, 18 de
novembro, a leitura brinca na praça. Venha conhecer escritores, ilustradores,
lançamentos, livros incríveis, comer pipoca, ouvir histórias e encher a vida de
outros tons, outros sentimentos. Talvez possamos, dessa forma, ler o mundo de
uma forma mais elaborada.
Precisamos.
Tem alguém errado
nessa história
Jornal Primeira Página, Portão, 19/10/2018
Assisti a um filme
intrigante no Netflix, O experimento de
Milgram. Baseado em fatos reais, a narrativa revela o estudo de um
psicólogo social norte-americano, Stanley Milgram. O ano era 1961, por essa
época, foi detido em Buenos Aires o “arquiteto do holocausto”, Otto Adolf
Eichmann. Nessa efusão em punir os crimes da grande insanidade nazista, Milgram
orientou sua pesquisa, que, grosso modo, procurava averiguar a relação entre o
ser humano “normal” e a capacidade de obedecer cegamente à autoridade. Nessa
experiência, ele se perguntava: E se uma ordem causar dor física em alguém? Até
que ponto uma pessoa tida como bondosa pode ir na simples execusão de um
comando?
Mas por que fui lembrei
dele logo agora? Vou contar.
Não recordo de ter ouvido
falar de Jair Bolsonaro até a época do impeachment da Presidenta Dilma. De
repente, aquela personagem caricata começou a aparecer cada vez mais na mídia e
em páginas de material jornalístico de origem duvidosa. Por esse tempo surgiu o
MBL, Movimento Brasil Livre, do qual Jair se tornou muso. Francamente, nunca
levei ele a sério. Das poucas vezes que parei para ouvir o seu discurso,
pensei: o Brasil já está maduro, não vai entregar-se a uma fala tão primitiva,
tão burlesca, tão arcaica, tão medieval. Tampouco isso agradará os jovens,
afinal, eles têm o germe da rebeldia, não vão comprar um autoritarismo
desses...
Para minha surpresa, o
flerte com o fascismo estava bem próximo de mim. O candidato teve o apoio de
amigos, irmãos, sobrinhos, primos, tios, enfim, pessoas que a gente ama,
conhece de perto, tomou chimarrão junto, partilhou a vida, abriu a intimidade.
Enfim, pessoas do bem, religiosas até...
E ele foi o presidenciável
mais votado no primeiro turno de 2018. Quase metade dos eleitores brasileiros
se identifica com o discurso de Bolsonaro. Não há como negar o seu ataque às
mulheres, aos negros, aos indígenas, à comunidade LGBTI, à Constituição. Mesmo
com todas as evidências de desequilíbrio, de falta de diálogo, de
autoritarismo, de fascínio pela violência, a população se entregou a uma
promessa de salvador cristão anticorrupção.
Refleti bastante sobre
isso. Então lembrei do filme sobre os experimentos de Stanley e tudo começou a
se ligar. Aquela ideia de que somos bondosos, tolerantes com o diferente, um
povo cordial, caiu por terra. Me dei conta da natureza má do ser humano, e não
posso deixar de pensar que a promessa de Jair em acabar com a corrupção não
poderia apagar seu discurso odioso. No fundo, esses eleitores querem é isso
mesmo, alguém que avalize o próprio mal dentro de si. Alguém que justifique o
desprezo pelo outro, pelo diferente, pelo empoderamento das mulheres, pelas políticas
de inclusão implantadas nos últimos tempos.
A nação está dividida. E
tem alguém que está do lado errado da história. Espero não ter razão, mas,
vencendo aquele que para mim representa o mal no ser humano, só posso concluir
que tempos sombrios se aproximam.
O livro da
discórdia
Jornal Primeira Página, Portão, 21/09/2018
Prometi para minha irmã
que durante o período eleitoral eu seria zen. Jogaria toda a carga negativa do
momento para o universo filtrar e mandar tudo de volta em forma de prótons,
íons e elétrons transformadores e reenergizantes.
Não consegui.
Lá vai.
E não é que o dia das
eleições está chegando?! Como escrevo para este espaço uma vez por mês, daqui a
trinta dias, se sobrevivermos até lá, já vai dar para ter uma ideia de como
será o Brasil dos próximos quatro anos. Mas tem o segundo turno, dirão, e eu
continuarei, sim, mas quem comanda o jogo político já vai estar escolhido, ou
seja, as Câmaras de deputados, estaduais e federais. Lembram? Aquele povo que
vota pela família, pelo cachorrinho, pela trajetória, pela igreja, pelo, pela,
pelo...
Medo.
Aliás, medo e incerteza
cercam estas eleições.
Como nação, somos ainda
muito imaturos para lidar com a democracia. Ela causa desconforto. Ter de
falar, ouvir o outro, trocar ideia, voltar atrás, refazer, fiscalizar,
proteger, olhar de novo, conferir. Ufa! É tão mais fácil um:
─ Eu mando e pronto.
Tem muita gente, muita,
que prefere assim. E é fácil entender, pois somos uma nação historicamente
escravagista, e por isso racista, que ainda usa como base de educação a tortura
e o medo. Quando fazemos essa memória histórica, fica fácil de entender o
porquê de tantos brasileiros acharem que a via de saída mais fácil é a do
autoritarismo. O problema desse caminho é que ele não tem volta. Normalmente as
marcas ficam para sempre. No corpo e na alma.
Mas de todas as
bizarrices do pleito, a que mais me chocou foi a postura de um candidato (o
nome dele não importa, mas já é raposa velha na política brasileira, com toda a
filharada presa na teta pública) ao massacrar uma publicação em rede nacional.
Um livro horrendo, capaz
de acabar com a família tradicional brasileira, de provocar os mais perversos
desvios nos inocentes, que deveria ter a capa vermelha, pois é cheio de
doutrinação comunista, sim, aqueles terríveis seres que devoram criancinhas. Um
livro maléfico, religião nenhuma sobrevive a ele, depois que uma criança o lê,
a fé dela evapora que nem uma gota d’água pingando na chapa quente do inferno.
Sim, um livro que fala de S-E-X-O.
O poder de um livro.
Pensando bem, é fácil
entender a repercussão que o fato gerou em mentes raivosas e manipuladas.
Por um erro histórico e
social, os livros foram sinônimo de poder em nosso país. Só tinham acesso a
eles os letrados e os endinheirados. Tornar-se um leitor nessas circunstâncias
dependia da sorte ou da genialidade. Pensando bem, se não fossem esses dois
fatores, talvez nem tivéssemos um Machado de Assis, pois ele, negro, pobre,
epiléptico e gago, tinha tudo para ter passado anonimamente para a história, em
vez disso, por sua conta e risco, tornou-se o que é: um dos nossos maiores
escritores.
Em matéria de leitura,
ainda precisamos fazer tudo, desde colocá-la como prioridade em nossa
sistemática de ensino, reforçar o hábito para além da escola, até qualificar a
oferta do que é lido, pois esse é um elemento por vezes esquecido em tentativas
de implantar políticas de promoção do livro.
Dessa forma, talvez as
futuras gerações tenham uma visão melhor do mundo, da política, das diferenças,
do ser humano como um todo e até mesmo do próprio corpo.
E o bom dos livros,
candidato, é que com eles a gente elabora, pensa, revive a realidade, embarca
na fantasia, flerta com a pura invenção e acaba até se humanizando. Sim, talvez
essa seja a maior vantagem da leitura: nos transformar em seres humanos
melhores.
Tá precisando, né?!
Quando outubro
chegar
Jornal Primeira Página, Portão, 17/08/2018
Era uma sexta-feira
fria de agosto. Passada uma semana de tarefas intensas, o que mais a gente quer
além de assistir um filmezinho, depois da sopa, agarrado no edredom tomando um
vinho e bem acompanhado? O inverno no Sul tem dessas. Mas, este dia de agosto
vai ficar na lembrança como a noite congelante em que peguei o carro e fui para
a cidade de Estrela ouvir o Cortella.
É interessante
nossa reação com o tipo de convite que exige certa desacomodação. A primeira
resposta que vem à mente é: não. Aí começamos a pensar melhor. O id, o ego e o
superego discutem acirradamente: é muito distante, diz o primeiro; mas vai ter
bastante gente interessante, fala o segundo; por fim, o terceiro argumenta,
deixa de ser preguiçoso, te ajeita e vai. Quase sempre não há arrependimento na
decisão de ir.
Desta vez, foi pra
lá de bom.
E como as histórias
boas precisam ser divididas, pois as ruins são nos enfiadas todos os dias goela
abaixo, vou narrar essa experiência marcante.
Em outubro próximo,
acontecerá a 8ª Feira do Livro de Estrela. Eu já achei interessante a postura
do pessoal que organiza o evento, pois no ano passado, em meados de junho,
estiveram em São Leopoldo para acompanhar um bate-papo do Jonas Ribeiro, que
viera de São Paulo para atividades literárias. Se deslocaram de lá, para
conhecer o escritor e ver como era o trabalho dele com os estudantes. No
decorrer do ano, conheci ainda mais a dinâmica de escolha dos autores e, para
minha surpresa, no início deste ano, fui convidado para ser o Patrono desta
edição.
Mas as novidades
não acabaram por aí.
A equipe está preocupada em realmente promover um evento eficaz, tanto, que há um movimento bem consciente para com
a formação de professores e de alunos quanto à qualidade em literatura.
Palavras mágicas essas duas: qualidade e literatura. Remédio para a
mediocridade que assola o país.
E no percurso do
diálogo, surgiu uma nova ideia. E se a Secretaria promovesse uma campanha capitalizando
os estudantes para aquisição de livros na feira? Aqui entra o motivo de eu ter
viajado em noite glacial. A prefeitura conseguiu viabilizar a vinda do filósofo, escritor, educador, palestrante e professor,
Mario Sergio Cortella. O valor arrecadado com a aquisição dos ingressos será revertido
em bônus e distribuídos aos alunos da rede municipal de ensino.
E
a friaca não impediu que mais de três mil pessoas se reunissem para ouvi-lo.
Uma
aula de história, de cidadania, de gentileza, de humanidade.
Entre
tantos momentos altos de sua fala, um me volta constantemente à memória: O
futuro é o passado em preparação (Pierre Dac). E o questionamento: O que
deixaremos de herança aos que continuarão sua jornada depois de nós?
Valeu
a pena enfrentar o frio e o cansaço para reforçar sonhos e compartilhar
sentimentos.
Vida
longa ao Cortella, à feira do livro de Estrela e aos que desejam a construção
de um mundo mais aprazível para se viver.
Venha
outubro e seus belos encontros.
Índio quer apito
Jornal Primeira Página, Portão, 13/07/2018
Entre maio e junho deste
ano, alguns espaços culturais de Porto Alegre foram ocupados pela 11ª Bienal de
Artes Visuais do Mercosul, tendo como mote o ponto de encontro entre as
culturas indígena, europeia e africana, que, nos últimos 500 anos, se cruzaram
formando um verdadeiro Triângulo Atlântico.
A mostra reuniu trabalhos
de 70 artistas e coletivos de artistas oriundos dos três continentes que
compõem essa triangulação, sempre com o foco nas produções afro e indígenas. Foi
possível perceber a diversidade e as influências misturadas nesse intercâmbio
de séculos entre os povos que acabaram miscigenando o Brasil, antes, território
de povos indígenas.
Entre as diversas obras
visitadas, uma me tocou em particular. Numa das salas do Memorial do Rio Grande
do Sul, assisti a um vídeo produzido por dois artistas, o carioca Igor Vidor e o paulista Yuri Firmeza,
de cerca de 6 minutos. Na parede do compartimento escuro, era projetado um rap
cantado por 4 jovens índios, os Brô
MC´s, considerado o primeiro grupo indígena brasileiro desse estilo musical. Os
quatro MC’s vivem na Aldeia Jaguapirú Bororó, em Dourados, Mato Grosso do Sul.
As frases curtas e ritmadas denunciavam a situação da aldeia, a ameaça do
agronegócio, as injustiças duramente impostas aos que primeiro habitaram estas
terras.
Para temperar ainda mais
minha inquietação, assisti ao trailer de um longa-metragem intitulado Ex-pajé,
nele, é retratada a maior ameaça aos povos indígenas hoje, as religiões de
caráter fundamentalista e imbuídas de forte apelo proselitista, que negam a
identidade cultural particular de cada povo e marginalizam a ancestral função
do líder espiritual da tribo como tarefa demoníaca.
Lembrei das coreografias
que fazíamos na escola em meados de abril. Num ano, era o Brincar de índio da
Xuxa, no outro, o Curumim iê iê da Mara Maravilha. Então, assistir aqueles
rapazes com sua cultura estampada no rosto, jogando aquelas palavras em mim.
Cara a cara. Eu, recebendo uma aula de história e de realidade, percebi não saber
nada do sangue que invariavelmente também corre nas minhas veias.
Um apito, como apregoava
a rainha dos baixinhos, talvez não seja suficiente para dar conta dos anseios
desse povo tão duramente vilipendiado. Os poéticos MC’s me mostraram um caminho,
conhecer o lugar de fala dos povos indígenas e deixar o meu lugar comum, esse pode
ser um pequeno passo para saldar uma dívida histórica por séculos mantida
calada.
Porangatu*.
Para assistir os Brô MC´s, acesse: https://vimeo.com/199698276
* Saudação indígena: lindo; muito belo; formoso; honrado; louvável; digno; honesto.
O amor está no ar
Jornal Primeira Página, Portão, 15/06/2018
Esqueci que 12 de junho era
dia dos namorados.
Foi assim, o dia
amanheceu cinzento. Chovia. Vizinha à minha janela, tem uma cobertura acrílica.
Ela funciona como um espalhador de cadência líquida. Gosto de ouvir a cantiga
produzida pela chuva. Tem tal coisa de infância, de dias sem precisar ir à
escola, enfim, de lembranças boas que, hoje, como adulto responsável, não me
permito repetir. O despertador avisa e pulo da cama. Minha mãe está longe para
dizer, levanta, guri, tem que ir pra escola. Mas eu tô com dor de garganta...
Não, a desculpa não cola. Então, mesmo com o barulhinho exigindo aconchego nos
cobertores, levantei e me preparei para enfrentar a vida.
Como não assisto TV e nem
ouço rádio (sim, sou alienado, pois não suporto a atual oferta de canais
públicos e prefiro ouvir música escolhida por mim), acabei não focando na
demanda mercadológica do dia. Dizem as más línguas que a data foi criada por um
desses Dórias da vida, empresário, interessado em alavancar vendas no parado
mês de junho. Casaram o dia com o de Santo Antônio, este sim, reconhecidamente
milagreiro. Bom, o fato é que mergulhei de cabeça no trabalho e deixei o
coração de lado.
Durante o dia, respondi
alguns questionamentos por e-mail, pelo Facebook, rápidas escapadelas no
Instagram, discussões sobre a cobrança por parte do prefeito de Porto Alegre
que resolveu alugar a praça (pública) onde há mais de sessenta anos acontece a
feira do livro da capital, com eventos absolutamente incríveis e gratuitos à
população. Também fiquei sabendo que o prêmio Jabuti, uma das maiores
distinções literárias do Brasil, mete os pés pelas mãos fundindo categorias (a
infantil e a juvenil), eliminando outras tão duramente conquistadas (a de
ilustração de livro infantil). E aí, uma rede vai se tecendo, um governo
legítimo deposto aqui, um corte em um programa literário ali, um livro de
literatura fantástica rechaçado por fanáticos religiosos acolá, e vamos
adentrando em túnel escuro e perigoso.
Nas terças à tarde, dou
aulas em um cursinho popular. Falamos sobre o período literário do romantismo.
Neste movimento, os escritores voltam-se mais para o subjetivo, para o eu, para
as paixões impossíveis e idealizadas. Sofrem de amor e morrem por ele. E nem
lembrei do dia dos amantes. Talvez tudo fizesse mais sentido se eu tivesse
feito essa associação.
O dia passou. Cheguei em casa encucado com os ataques funestos à literatura e à cultura. E ele estava lá, na garrafa de vinho sobre o balcão, na sacola com um presente inusitado, no clima de aconchego e, apesar de todas as injustiças do mundo, de todas as desesperanças sociais, o amor me esperava. E como eu não havia me preparado para a ocasião, decidi entregar-me por completo a ele. O amor esteve no ar.
Ela vem aí
Jornal Primeira Página, Portão, 18/05/2018
Dia 27 de maio inicia
mais uma feira do livro em Portão. Em sua 29ª edição, já não é mais uma criança,
quase madura, toma decisões por conta própria, sabe onde quer ir e chegar. Pelo
menos é o esperado. Acompanhei, ano passado, todo o processo de organização e
execução e posso garantir, tem gente apaixonada nos bastidores, fazendo de tudo
para que os livros ganhem destaque e conquistem leitores.
Neste ano, a patrona será
a Chris Dias. Boa escolha. A rede local de ensino terá livros de reconhecida
qualidade para embarcar nessa viagem que é a leitura. Além de autora, a
Christina possui um projeto chamado Kombina, um ponto móvel de fazer arte. O
pessoal que gosta de carros antigos vai curtir.
Nesta feira acompanharei
a movimentação de longe, pois tenho outros compromissos literários no período.
Mas não posso deixar de desejar sucesso para o evento, que ele cumpra com o seu
objetivo, apaixonar leitores. Como sou um pouco metido nessa matéria, gostaria
de deixar algumas dicas para os interessados em embarcar no universo da palavra
escrita. Vamos lá.
Em primeiro lugar,
aproveite o que as secretarias de cultura e de educação estão oferecendo de
forma completamente gratuita. Um passarinho me contou que o maior divertimento
do brasileiro é assistir televisão. Desligue isso. Se estiver assistindo um bom
filme (eu disse bom, não os enlatados norte-americanos que produzem basicamente
o mesmo efeito da TV aberta brasileira, derreter cérebros), pode terminar de
assistir e depois voe para a feira do livro. Lá vai ter bate-papos com homens e
mulheres loucos por histórias.
Chegando na feira, tem
que comprar livro (eu disse livro, não revista de atividades, adesivos,
material para colorir, joguinhos, brinquedos disfarçados de livros, nada que
pisque, brilhe ou faça barulho). Vários, de preferência. Isso pode ser uma bela aventura. Às vezes a
gente não se prende em alguns detalhes, então, vou falar deles. Procurem obras
que tenham sido escritas por alguém. Possivelmente, se a editora for honesta,
esse alguém receberá direito autoral, que é o salário de quem escreve. Veja
quem ilustrou. Observe se as ilustrações dialogam com o texto e não apenas
repetem o que está escrito, se dialoga, pode ser arte, aí é bom. Procure o nome
da editora. Toda casa publicadora tem um objetivo, uma intenção, uma ideologia.
Se conseguires todas essas informações no livro que você tem na mão, vale
investir na aquisição.
O que evitar? Tudo que
tiver sido impresso na China, pode ter sido produzido via trabalho escravo. Para
os pequenos, desvie de qualquer coisa que lembre algum programa de TV (lembra
do cérebro derretido?). Então, nada de Pepas, Frozens, Carros, Princesas e
outros personagens estereotipados que, tal uma enxurrada, desvirtuaram o
mercado cultural em nosso país. Há a literatura de qualidade. Se você tem
dúvidas, pesquise os livros que ganharam o Prêmio Jabuti, o Açorianos, os 30
melhores da Revista Crescer, o Catálogo de Bolonha, o Selo Altamente
Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, o Prêmio AGEs –
Livro do Ano, o Cátedra 10 da Unesco, a lista da Revista Emília, o Prêmio
Biblioteca Nacional. É possível acessar esses títulos em qualquer equipamento
com internet. Se não os encontrar na feira, exija. Só assim o mercado vai
mudar, quando houver critério na busca. Senão, será a permanência da
mediocridade.
Por último, calcule o
quanto você gasta em um churrasco no final de semana. Use no mínimo a metade desse
valor para comprar em livros.
Mudaremos o mundo.
Ser ou não ser –
eis a questão
Jornal Primeira Página, Portão, 20/04/2018
Saiu nesta semana a lista
dos quatro novos livros inseridos nas leituras obrigatórias do concorrido
vestibular da UFRGS. Quem gosta de literatura, não perde a oportunidade de questionar
as razões de tal ou qual obra ser escolhida. As inclusões deste ano são bem
representativas. Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, escritora maranhense,
considerada a primeira romancista brasileira, foi um dos primeiros livros a
revelar a realidade escravocrata do Brasil do século dezenove. Páginas Avulsas,
do feiticeiro Machado de Assis, traz contos clássicos como O Alienista, Teoria
do medalhão, O espelho. Vários poemas da portuguesa Florbela Espanca também
figuram na lista, entre eles, Fanatismo, popularizado na voz de Fagner num
disco da década de oitenta. Para completar, Hamlet, do inglês William Shakespeare.
Li este na tarde de domingo.
Enredo incrível. Nosso
herói dá nome ao livro e vive terrível drama pessoal. Seu pai morre em situação
um tanto inexplicável no jardim do palácio. O irmão do monarca, Cláudio, assume
o trono e casa com a cunhada, Gertrudes. Hamlet não se conforma com a união e
entristece a olhos vistos. Mas, o fantasma do rei vaga pela noite nevoenta e revela
ao filho o verdadeiro motivo de sua morte. A partir daí, Hamlet inicia uma jornada
pessoal de justiça e vingança. As tramas, aos poucos, vão urdindo e ficamos com
a sensação amarga de: o que o ser humano é capaz de fazer para tomar o poder. Há
mais coisas no céu e na terra do que sonha a filosofia. E o sangue escorre...
A gente precisa da literatura
e da arte em geral para isso mesmo, fugir da realidade. Coisa boa saber que não
há algo de podre no nosso reino da Dinamarca, a justiça funciona sem priorizar
este ou aquele lado, imparcial, nem sombra de juízes políticos, prisões sem
provas e uma constituição acima de tudo e de todos, capaz de regular e servir
de base para a cidadania. Bom saber que as artimanhas para ocupar o poder resumem-se
à ficção, que candidatos preconceituosos, machistas, saudosistas de
militarismos, disseminadores de ódio só se criam na fantasia. Só nela, um
cidadão acima de qualquer suspeita derrama veneno no ouvido do próprio irmão,
toma-lhe o posto e o cheiro de podre se espalha empestando o reino inteiro.
E para não fugir das
frases célebres de Shakespeare, do início ao fim, o resto é silêncio.
Sim, é política
Frida
Jornal Primeira Página, Portão, 16/03/2018
Assisti “Frida Kahlo, à
revolução!” durante a temporada 2018 do Porto Verão Alegre, com texto e atuação
de Juçara Gaspar, direção de Daniel Colin e trilha original ao vivo de Luciano
Alves. Já tinha escutado sobre o talento artístico da Juçara. Munido dessa
informação e sabendo que a apresentação seria no emblemático Theatro São Pedro,
fui.
Um dia antes, havia chegado
de férias do Uruguai. A língua espanhola ainda enrolava com a portuguesa na
minha cabeça e a atmosfera de preservação da história, tão própria em nossos
hermanos, ainda refrescava os sentidos. Entrar, dessa forma, no
universo de Frida foi fácil. As luzes do belo lustre suspenso sobre
nossas cabeças apagaram e estávamos em Coyoacán, na época da narrativa,
pequena localidade perto da Cidade do México e que na língua ancestral asteca
significa lugar de coiotes.
Juçara passeou com
desenvoltura e emoção pela dura vida de Kahlo, desde sua infância, muito
próxima da figura paterna, passando pela adolescência, e o acidente que a
deixou com sequelas pelo resto da vida, até sua conturbada relação com o também
pintor Diego Rivera.
Para além de todo aspecto
biográfico da peça, está a proposta tão atual e necessária, e que a atriz
procurou sintetizar da vida e da obra dessa personagem tão instigante. Sua
trajetória é um convite à desacomodação, à fuga do lugar comum, à mudança de
costumes hipócritas, enfim, à revolução.
Saí do teatro com a
sensação de que meu mundo, meu universo de atuação, é pequeno, precisa de
ampliação, de desafios. É comum quando algo nos deixa assim, com a
respiração suspensa, a tentativa de partilha, de procurar espalhar a novidade.
Então, cá estou eu recomendando. Quando tiverem oportunidade, não percam.
Assistam a grande Juçara Gaspar, a elementar Frida Kahlo e a rica costura
musical do talentoso Luciano Alves.
Dias atrás, adotamos
uma gatinha que precisava de um lar. Ao conhecer a bichana magra, meio
desconjuntada, tão sem pretensão aparente à vida, pensamos, pode se chamar
Frida. E para não a deixar só, encontramos outro filhote para se fazerem
companhia na solidão dos dias de semana. Ele precisava de um nome à altura. E
tornou-se Fidel.
E agora, nossa casa está
cheia de comunistas. Talvez um sinal de que novas revoluções precisam ser
travadas. Vermelhas.
Para
quando eu for adulto
Jornal Primeira Página, Portão, 15/12/17
Há poucos dias vi uma
notícia nas redes sociais (sim, sei que ler comentários em postagens polêmicas
dá câncer, mas como o tema atraiu, me demorei ali). Resumindo a ópera, os
vereadores de uma pequena cidade aqui da região, não tinham coisa melhor para
legislar, então, resolveram caçar as bruxas nas escolas públicas do município
através de uma famigerada lei proibindo as atividades pedagógicas que visem a
reprodução de conceito de ideologia de gênero.
Sabe quando dá um cansaço
na gente? O pior de tudo é perceber que esse discurso equivocado e retrógrado
circula entre jovens, aqueles que por natureza deveriam rechaçar esse tipo de
fala.
Então, lembrei de minha
própria adolescência. Lá em Tupanciretã. Cidade bem conservadora, de gaúcho
pilchado e no lombo do cavalo (adivinha a roupa de gala do meu pai? Bombacha).
Pois, na época, li um livro incrível, O tempo e o vento, do Erico Verissimo (por
sinal, natural de Cruz Alta, ali ao lado). Me senti em um espelho. A cidade
fictícia de Santa Fé parecia um tanto com minha própria realidade: coronéis
idolatrados mandando e desmandando na política, meia dúzia de ricaços
ostentando e ditando as regras para uma população que tinha como auge cultural as
apresentações em algum clube tradicionalista, a igreja católica mantendo a
maioria dos fiéis (um dos padres com uns 50 anos de paróquia e o outro com uns
20 anos de casa).
Aí apareceu por lá duas
criaturas mitológicas. Um padre e uma freira. Ele havia se ordenado já adulto,
cheio de ideais. Ela foi parar lá de castigo, para trabalhar no colégio das
irmãs (nem precisa dizer quem estudava ali, né?), pois era rebelde, precisava
aprender a obedecer. Eu tinha 15 anos de idade e minha vida mudou umas 65 vezes
naquele ano. Eles organizaram grupos de estudo pelas comunidades do município.
A gente falava de tudo. Dos problemas da cidade, da falta de oportunidade de
trabalho, de violência doméstica, de sexualidade, de política, de religião.
Sempre com o modo crítica ligado. Aquele jeito novo de falar, debater,
discutir, fez a minha cabeça. Eu pensava, não vou ver uma mudança social hoje,
mas quando eu for adulto, será um novo tempo, um novo país. Vai ser bem melhor
ser brasileiro.
Então, aos 41 anos de
idade, em pleno século XXI, em outro milênio, com a tecnologia bombando, as
distâncias cada vez menores, o conhecimento a um clic, me deparo com um país
liderado por gângsters, com os direitos humanos achincalhados, com nossa jovem
democracia assolada, com o discurso de ódio sólido e solto, enfim, com a volta
de um fascismo que durante muito tempo se manteve entre quatro paredes e hoje
nos invade, nos julga.
Mas sabe o que foi pior?
Assistir a um jovem defendendo a proibição do diálogo em uma sala de aula.
Do jeito que vai a
coisa, não será nesta vida que teremos boas histórias para contar.
Sim, é política
Jornal Primeira Página, Portão, 20/10/17
Dia desses visitei várias
escolas de um município gaúcho. A secretaria de educação adquiriu uma
quantidade de livros, as unidades escolhidas receberam kits com as obras e,
depois de um tempo para leitura, lá fui eu para os bate-papos. Foram momentos
ricos, como de fato são os encontros em escolas públicas.
Mas algo me intrigou. Num
dos colégios, com aproximadamente mil alunos, não haviam trabalhos expostos,
nem aquele clima de, o escritor chegou! Salas de aula cheias, quadra de
esportes ocupada. Um dia como outro qualquer. Depois de alguns minutos, me
conduziram para uma espécie de auditório. A conversa seria com apenas uma turma
de uns trinta estudantes. Vamos lá, parafraseando Milton, o artista vai aonde o
povo está.
Foi o melhor bate-papo da
temporada. Jovens atentos e cheios de questionamentos. Eles leram os livros.
Era perceptível. O escritor acaba desenvolvendo também essa característica, a
de saber se as obras foram lidas. E então veio a surpresa. Uma única professora
quis utilizar os livros enviados pela secretaria de educação. Os demais
educadores acharam-nos políticos demais.
Em princípio fiquei chocado,
pois em meus parcos quatro livros publicados eu apenas tentei contar uma
história. Claro, fiz escolhas por temáticas que acho interessantes. Elas
transitam pelo regime militar, pela corrupção, pelo amor aos livros, pelos
causos de mistério e assombração.
Se não me engano foi na
mesma semana que esbravejaram contra a Queermuseu.
Senti na pele, talvez pela
primeira vez de forma ostensiva, a censura. Mas nunca pensei que ela partiria
de colegas de ofício. Uma classe tão oprimida, tão deixada para depois como a
dos professores...
Tenho utilizado um livro
bem antigo da grande Ruth Rocha (outra baita politiqueira). Ele se chama O reizinho mandão. Gosto da edição
antiga, ilustrações em preto e branco, quase livro de bolso, da Quinteto
Editorial. Hoje ele ganhou roupagem elegante na Salamandra, um selo da Moderna.
Nesse livro, um reizinho muito do autoritário, de tanto mandar seus súditos
calarem a boca, conseguiu uma proeza, as pessoas desaprenderam de falar. Ele
vai ter um grande desafio pela frente na intenção de reverter o processo de
silenciamento no qual o reino mergulhou. Mas a grande sacada da narrativa está
no desenlace. Entre os finais possíveis, o narrador revela que o reizinho pode
ter se transformado em sapo. E ele está à espera de que alguma princesa o
desencante. Por isso mesmo, é bom ter cuidado ao sair por aí distribuindo
beijos de amor em qualquer sapo que apareça... os reizinhos mandões podem
voltar a qualquer momento.
Fiquei pensando. Há um
fundo de verdade no que aquele grupo de professores verbalizou. Não na censura,
a dita cuja é execrável, mas sobre minha escrita. Ela é política. E talvez só
consigamos mudar este país tão historicamente explorado politicamente (olha ela
de novo aqui), quando começarmos a gostar mais de política. Parece infantil e
quase lugar comum dizer isso, mas vamos lá, tudo é política. A atitude de
descaso ao meu texto foi política e está ligada ao atual processo político. Um
mundo cheio de Trumps, Bolsomitos, Dórias, Crivellas e Júniors. Todos dispostos
a cercear, podar a arte, acabar com a discussão. As minhas opções e as de
qualquer um, são políticas.
A questão toda é o uso que fazemos delas.
A questão toda é o uso que fazemos delas.
Pequena reflexão sobre a utilidade da literatura
Jornal Primeira Página, Portão, 16/06/17
Você já se perguntou para que serve a literatura?
No livro Ao revés do avesso - Leitura e formação (Pulo
do Gato, 2015), Luiz Percival Brito aponta duas considerações. Segundo ele, a
literatura serve para tudo e para nada. “As narrativas fantásticas e as de cotidiano, as histórias e fatos
que não aconteceram e que podiam ou podem acontecer (...) não forma nem
conforma os espíritos, não salva nem consola, não ensina nem estimula. Enfim,
não se presta muito para coisas práticas e aplicadas”. Mas também, “A
literatura presta para tudo. O texto literário é um convite a uma ação
desinteressada, gratuita (...) um tempo em que a pessoa se faz somente para si,
para ser, um tempo de indagação e contemplação, de êxtase e sofrimento, de amor
e de angústia, de alívio e esperança, disso tudo de uma só vez e para
sempre”.
O grande poeta
matogrossense Manoel de Barros dizia que “Noventa por cento do que eu escrevo é
invenção. Só dez por cento é mentira”.
Durante muito
tempo, as narrativas para crianças e jovens foram utilizadas como ferramenta de uso pedagógico em ambientes escolares. No intuito de tornar a
literatura conhecida e buscando comprovar o aprendizado da matéria pelos
alunos, milhares de possíveis leitores passaram a odiar Machado, Alencar e tantos
outros escritores formadores da rica literatura nacional e mundial.
E então nos
deparamos com os textos citados acima. Um teórico, outro poético. De certa
forma eles se completam, pois nos apontam caminhos para o trato com o universo
ficcional. É inegável, o texto literário vai “ensinar” alguma coisa, mas não
deve ser esse o papel principal. Por si só, a prática da leitura é um ótimo exercício para o cérebro. Já pensou, com quanta baboseira a gente
deixaria de se defrontar ao acessar as redes sociais?
De repente, pelas
ruas, a gente já não ouviria somente a discussão sobre o brasileirão. Nesse
novo mundo hipotético, encontraríamos seres humanos comemorando porque a
Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) escolheu como melhor
livro na categoria poesia o Um dia, um rio (Pulo do Gato, 2016). Obra
belíssima, com texto refinado e tocante. Escrito por Leo Cunha e ilustrado por
André Neves. Um grito de alerta para não deixar esquecer o ocorrido em Minas Gerais,
cidades inteiras soterradas de lama contaminada pela ganância de empresas mineradoras. Mesmo
não fazendo alusão direta ao crime em Mariana e arredores, o texto, narrado por
um rio, faz pensar sobre a relação do homem com a natureza e com o ninho acolhedor chamado Terra. Traz a lembrança de que Portão já foi
manchete nacional por ter empresas jogando material poluente nas águas que
cercam a cidade.
Esqueci de dizer.
Além de não servir para nada e de servir para tudo, a literatura é um tanto perigosa. Tem memória.
Talvez seja melhor voltar ao brasileirão.
Que prossigam os
jogos. Desejos de novo ano
Jornal Primeira Página, Portão, 20/01/2017
É normal quando um novo ano inicia a gente criar
expectativas. Somos humanos e temos dessas coisas. Apesar do mundo estar
desmoronando ao nosso redor, acreditamos que daremos a volta por cima, afinal,
somos brasileiros, não desistimos nunca e, se der na telha, é possível dar um
jeitinho. Então, entrando no clima de renovação, quero jogar para o universo
alguns anseios para o novo ciclo que começa neste janeiro.
Vamos lá.
Tentarei: ser mais engraçado e menos fatalista; amar descaradamente;
me indignar com uma situação de preconceito; perder a barriga e criar alguns
músculos (não necessariamente nessa mesma ordem); não ter vontade de matar no
trânsito; ver a lua quando estiver cheia, minguante e crescente... a nova não
se vê mesmo. Lamentarei as noites em que o céu estiver nublado e não for lua
nova; ver o pôr do sol na Boa Vista[1];
mudar sempre que necessário; lembrar que de boas intenções o inferno está
cheio; compor uma canção; ligar mais para minha mãe; ir numa festa que só toque
música brasileira; tirar o pé do acelerador; tomar apenas três doses de
tequila; passar tardes inteiras tomando chimarrão no parque.
Quero muito: escutar panelas batendo contra a corrupção; ver
pessoas lendo livros de verdade nos lugares mais improváveis; uma música que me
arrebate desde a primeira vez que a ouça; não ver uma situação de preconceito;
a paz mundial; calar quando o que falar não fizer o menor sentido; pensar duas
vezes antes de emitir uma opinião; ler Clarice; asfalto na Sanga Funda[2];
excluir gente sem noção do Facebook; menos Facebook e mais faces and books; que a pequena corrupção diária acabe junto à dos
grandes escalões; lançar um novo livro; saber que alguém lê o que escrevo e que
isso faz algum sentido; admirar uma alameda de hortênsias; ter tempo para escrever sem me preocupar com o
fato de o telefone não parar de tocar; não precisar andar pela casa à procura
do sinal de internet; acordar e saber que CULTURA vai além do nosso quintal e
muito além do que aparece no domingão; descobrir que a Bethânia vai fazer um novo
show; me enroscar num abraço; viajar para a Patagônia no inverno; que o
discurso de ódio vire piada de mau gosto; saber de fonte segura que o fanatismo
só existe na ficção; um vinho, amigos e petiscos vegetarianos.
Seria lindo: professor ganhar mais que político, e sem
parcelamento; transformar 20 anos em 2 dias; temer jamais; não existir mais
cotas, pois a justiça social finalmente impera; ver o mar, acompanhado;
descobrir que acabaram os congestionamentos; que os caminhões entrassem em
extermínio; ouvir no noticiário que baixou o preço da gasolina; saber que o
câncer não mata mais ninguém; fazer desaparecer programas sensacionalistas; que
ler um livro fosse mais importante que assistir uma partida de futebol; que o futebol se tornasse apenas um esporte;
substituir todos os programas de futebol, em todos os meios de comunicação, por
algo que realmente faça algum sentido para a humanidade; ir ao cinema na terça-feira à tarde.
Já que tenho grandes expectativas, se ao menos meia dúzia
delas acontecerem, já estarei bem satisfeito.
Feliz novo ano!
[1]
Bairro quase na zona rural de Portão (RS), de onde se avista Novo Hamburgo,
Estância Velha, Canoas, Porto Alegre, Triunfo e um pôr do sol estonteante.
[2]
Estrada localizada na zona rural de Portão que serve de atalho para evitar o
trânsito da BR 116 e chegar mais rápido em Porto Alegre. É linda, mas tem 5 Km
de chão batido.
O
ano sem fim
Jornal Primeira Página, Portão, 16/12/2016
Dizem por aí que 2016 está quase acabando. Não quero
ser pessimista, mas acho que na verdade ele agoniza, como aquelas chagas
abertas, machucaduras antigas, que de tanto inflamarem por baixo da pele de
repente vêm a furo e se transformam em feridas que não param mais de jorrar
pus.
Essa é a imagem que me vem à mente. O ano em que a
corrupção se mostrou de forma mais sórdida e visceral; em que as manobras
políticas convulsionaram o país; em que as redes sociais se encheram de ódio e
de discussões mal fundamentadas e preconceituosas; em que ficou evidente a
falta de preparo da maioria dos brasileiros em lidar com um bem de valor
inquestionável para qualquer povo civilizado, a democracia.
Mas o ano deveria durar apenas mais uma semana, pois
já é Natal, aquele período superaquecido pelo faturamento do mercado, das ceias
bem elaboradas, do churrasco caprichado, de abusar do limite do cartão de
crédito para deixar nossos afetos felizes, de distribuir presentes vestido de
Papai Noel em alguma vila empobrecida e “menos privilegiada pela sorte”.
Neste ano que não finda, penso em fazer uma reflexão
diferente. Meu foco não será o menininho rosado sobre a macia palha à luz da
estrela de Belém. Pensarei no drama de uma mulher grávida, não de um homem, mas
de um desígnio divino, que precisou passar por um recenseamento (burocracias do
poder constituído, aliás, poder este completamente masculino). Ela chega à
cidade dos antepassados de seu esposo, ao mesmo tempo, o momento do parto se
anuncia. No entanto, as casas estão fechadas para ela, mesmo que insista em
mostrar aquela enorme barriga, prestes a dar à luz, o que se ouve em resposta é
apenas o bater das portas se fechando à sua passagem, como uma estranha e
desafinada banda que resolve tocar a espaços de tempo curtos, mas contínuos.
Não resta outra alternativa senão parir ao lado de fora, na estrebaria, entre os
animais domesticados. A história não termina por aqui, o rei feroz, truculento e com sede de poder, se prepara para
aniquilar o recém-nascido, tem medo de perder o trono...
Talvez 2016 acabe
para muitos, mas não para quem tem memória, para estes será, evocando o grande
Zuenir Ventura, um ano que não terminou. Os fantasmas que nos assombraram
rasgarão a última folhinha do calendário, a jogarão no lixo com desdém e
começarão tudo de novo. Tempos sombrios... Espero que a criança e sua mãe
consigam sobreviver.
A propósito de um projeto de leitura
Eunice Silva – Professora
Antônio Schimeneck - Escritor
28/08/2016
Como se não bastasse todas as crises às
quais nosso país atravessa, não faltam dados e fatos para demonstrarem que a
leitura também segue no mesmo rumo. Aliás, os brasileiros nunca tiveram um bom
relacionamento com os livros. Até pouco tempo, a maioria da população não
frequentava os bancos escolares regularmente, os livros eram caros e só quem
podia dar-se ao luxo de possuí-los era uma pequena elite privilegiada.
Recentemente, iniciativas tímidas tentaram transformar este cenário. Alguns
programas governamentais levaram literatura de alta qualidade para as
periferias, editoras nacionais tiveram fôlego para produzir obras incríveis
que, excluindo-se as compras públicas, que possuem curadoria especializada,
nunca seriam adquiridas pelo público em geral, por desconhecerem uma literatura
mais livre e profunda ou simplesmente porque as livrarias e livreiros em geral
não colocam esse “produto” em suas vitrines. O livro e a leitura passam por uma
crise cultural no Brasil. Em geral, não é um produto que a maioria da população
tem interesse em adquirir e o que há disponível como opção de compra é o mais
do mesmo: o oferecido pela mídia. Tendo em vista toda essa problemática, surgiu
a ideia da criação do projeto: "Quem
lê tem mais a dizer”, que tem como objetivo motivar e despertar o gosto
pela leitura. Esta nova forma de ver a leitura contemplou os alunos do Colégio
Marista PIO XII de Novo Hamburgo, na disciplina de Língua Portuguesa.
Como bem se sabe, além de todos os
problemas expostos acima, os livros também concorrem com as novas tecnologias e
todas as suas maravilhas. Não que elas sejam vilãs, a leitura em plataformas
digitais pode se ampliar de uma maneira extraordinária, mas o fato é que essa
experiência está longe de acontecer nos meios eletrônicos. Nossas crianças e
jovens, na maioria das vezes, estão mergulhadas em um universo de conteúdo
rápido e superficial. Motivar a leitura e a escrita no espaço amplo da
tecnologia vem sendo um grande desafio.
Para iniciar a proposta de leitura, foi
necessário encontrar um escritor que estivesse disposto a compartilhar um pouco
mais do seu tempo. Antônio Schimeneck foi o autor escolhido com a obra A
verdade em preto e branco (BesouroBox, 2015). Antes dos estudantes conhecerem o
livro, Antônio, a convite da professora, fez um bate-papo com cada turma. Nesta
fala, abordou a importância da leitura na atualidade, bem como apontou alguns
dados sobre o panorama da leitura no Brasil; foi também a oportunidade de
discussão sobre a necessidade de ter o hábito de ler para uma melhor
comunicação. Diante desta conversa informal, o livro foi apresentado e
posteriormente adquirido pelos alunos, que prontamente se motivaram pela
temática e história inspiradora.
Considerando a abordagem trabalhada, quem
lê se mantém informado e sabe comunicar-se com facilidade, o projeto contemplou
a leitura da obra e logo um novo encontro com o autor. Em forma de debate, cada
aluno foi convidado a refletir sobre um aspecto da obra em diálogo com o
escritor e com a mediação da professora. Neste momento, tivemos a oportunidade
de refletir sobre todo o enredo lido, deixando assim o aluno ser o protagonista
da história. Este espaço pedagógico permitiu ao educando a interação com o
autor, a expressão oral, a fundamentação de opiniões, o saber pensar e
posicionar-se, além de desenvolver as habilidades de interpretação e
compreensão do texto.
Nesta abordagem prática, os
alunos foram avaliados por meio de uma aprendizagem significativa atendendo
suas habilidades e competências do componente. Não foi uma prova tradicional do
livro, mas uma prática de leitura. Iniciativas assim, podem ser determinantes
para formar novos leitores críticos, que talvez consigam amar a literatura, ter
muito mais a dizer, saber o que perguntar e ainda por cima ler o mundo. Mundo
este tão cheio de crises, fabricadas ou não.
Com defeito
Jornal Primeira Página - Portão - 19/08/2016
Dia desses, estava em uma loja que vende filmes em DVD, sim,
algumas ainda sobrevivem, pois sempre tem um colecionador que não se contenta
somente com o mundo virtual. Então, como dizia, depois de escolher algumas
películas, entre elas algumas nacionais, encaminhei-me para o caixa. Na minha
frente estava um rapaz. Vi que levava um desses enlatados norte americanos com
máquinas possantes, recheado de efeitos especiais, de homens musculosos e de
mulheres estonteantes. Até aí, tudo bem, sabemos que o Brasil tem Hollywood
como referência no quesito cinema, mas o que chamou minha atenção foi uma
pergunta entredentes: “Funciona em brasileiro? ” O atendente não entendeu muito
bem, ficou com aquele ponto de interrogação enorme no meio da testa. O jovem
esclareceu: “Eles falam em brasileiro?” Desta vez o vendedor compreendeu e
tascou um: “É só selecionar o idioma com o controle remoto...” “Mas o meu botão
tá com defeito”. Foi a rápida resposta.
Fiquei refletindo sobre tudo isso por um bom tempo. Me dei
conta do quanto a falta de leitura influencia em tudo na nossa vida. Não é de
hoje que se sabe que a maioria dos brasileiros vê filme dublado. Fico
imaginando como seria assistir meus atores e atrizes prediletos, e que são
tantos, falando em português e não em seu idioma original, sem a emoção, a
entonação e a interpretação que lhe são característicos. Nosso cérebro é tão
poderoso, que pode ver a imagem e ler ao mesmo tempo, mas cadê a disposição?
Realmente, somos um país que lê pouco, lê mal e até não lê nada.
Nos últimos tempos, alguns tímidos passos foram dados para
sanar essa lacuna. Programas governamentais levaram até as escolas públicas
milhares de livros de alta qualidade literária. Uma gota d’água diante do
oceano de necessidades: bibliotecas com profissionais qualificados para a
função, investimento em formação de mediadores de leitura... Mas, veio a “crise”
e os programas foram suspensos, afinal, cultura não dá lucro, não é uma necessidade
básica, quando muito se mantém alguns circos no intuito de manter a população
deitada em berço esplêndido.
Então me dei conta de que não era só o botão de play do
controle remoto do rapaz na loja de DVDs que está com defeito. É um legado de
centenas de anos de exploração política (que mantém a maioria do povo de nosso
país nesse entrave cultural, como bem descreve Zé Ramalho, numa “vida de gado,
povo marcado, povo feliz...”) que precisa de uma revisão, de uma repaginada, de
um passar a limpo. Resta saber quem está disposto a iniciar essa empreitada...
A propósito, entre os filmes que comprei naquele
dia, estavam três com falas em brasileiro, feitos aqui mesmo, nem precisa
selecionar o idioma no menu. Um deles já assisti cinco vezes. Se chama: Irma
Vap, o retorno, com Ney Latorraca, Marco Nanini e grande elenco. Os
protagonistas se dividem em vários personagens, num enredo engraçadíssimo, no
qual eles... mas esta, é outra história...
Abrindo os portões para a literatura
Jornal Primeira Página - Portão - 17/06/2016
Durante a primeira semana de junho, dois acontecimentos tiveram
a capacidade de mexer com conceitos, alargar horizontes e promover o amor pela
literatura em nossa cidade. Duas mulheres foram protagonistas destes encontros:
uma de São Paulo e outra do Rio de Janeiro. A paulista Rosana Rios, além de
homenageada no Sinodal, conversou com os alunos da Escola 9 de outubro. A carioca
Marina Colasanti foi a patrona da feira do livro do Colégio Sinodal. Quem
esteve presente, certamente terá algumas histórias para contar.
O 9 de outubro quebrou alguns paradigmas. Sabe aquele
preconceito: em escola pública não se adquire livros... não foi isso que se viu
na feira do livro da instituição. Com a proposta diferenciada de proporcionar
literatura e autores de qualidade para o ambiente escolar (O Rio Grande do Sul
é campeão em promover eventos literários, tanto a nível municipal quanto
escolar, no entanto, o livro, que deveria ser o ator principal, resume-se ao
mais do mesmo: best-sellers para os jovens e maletas ordinárias feitas na China
para crianças), os estudantes adquiriram centenas de obras literárias,
realizaram leitura prévia e receberam para bate-papo nada menos que a autora de
150 livros voltados ao público infantil e juvenil. Além disso, Rosana Rios
acaba de ser agraciada com o Prêmio FNLIJ 2016 - Categoria Jovem pelo livro Iluminuras: uma incrível viagem ao passado,
Lê Editora.
Nascida em uma colônia italiana na África, Eritreia, Marina
viveu também na Itália e, durante a adolescência, veio para o Brasil. Recentemente
foi indicada a um dos maiores prêmios da literatura infantil e juvenil mundial:
o Hans Christian Anderesen. Enfim, uma mulher de vários mundos, com vasta
experiência de vida e de leituras, teve a capacidade de deixar seus ouvintes
embasbacados. Marina tem poder. Da aparente fragilidade, brota uma pessoa cheia
de fibra e personalidade. Não é à toa que é considerada uma das grandes damas
da literatura nacional. Ela fala de tudo e tudo que diz pende para a poesia. É
literatura.
Presenciar estas duas escritoras é como ter um vendaval
particular sacudindo nossas estruturas. Elas falam do cotidiano, fantasiam a
realidade e nos mostram que outros mundos são possíveis. Ouvi-las é correr
riscos. É perceber que a vida vai adiante da curva da esquina. Que nossas
pequenas tragédias pessoais podem ser nada se olharmos para o outro, se ousarmos
ver além. É dar-se conta de que nossa mediocridade pode ser desmedida.
Melhor ainda é saber que elas nos apontam saídas, e são
unânimes nisso. A alternativa para sermos mais, para sermos plenos, passa pela
leitura. Só quem lê pode entender melhor o seu entorno. É desta forma que nos
conheceremos um pouco mais e poderemos tornar o mundo um tanto mais habitável,
um tanto mais amistoso.
Salve, Rosana.
Salve, Marina.
À luz da leitura
No dia 17 de novembro de 2015, estive no Instituto de
Educação Tiradentes de Nova Prata para um bate-papo com estudantes do EFII que
leram meus livros: Por trás das cortinas e A verdade em preto e branco. Chamou-me
a atenção o empenho dos estudantes em apresentar resultados dessas leituras, o
que de pronto já quebra o paradigma de que os alunos não gostam de ler,
principalmente nas escolas públicas.
Outro fator interessante foi a disponibilidade da
instituição em acolher a ideia de envolver os jovens em um processo de leitura
literária. Isso dá trabalho, o que acaba desestimulando muitos educadores. A
literatura tem um poder incrível. Infelizmente, nosso país ainda não descobriu
essa força. Na grande maioria das escolas, esse universo ficcional é tratado
como objeto de avaliação e tido como enfadonho por grande parte dos estudantes.
Além disso, livro em terras brasileiras não é um item de primeira necessidade,
antes dele vem a roupa descolada, o tênis de marca, a mochila da hora e o
celular último tipo. Junto com o desinteresse por grande parte da população, o
universo da leitura envolve uma crise maior ainda: o que é oferecido como
literatura aos possíveis leitores.
Temos no Brasil uma quantidade enorme de editoras que
trabalham incansavelmente para produzir literatura de qualidade. Esses livros
acabam ganhando os maiores prêmios a nível nacional e internacional. Essas
editoras conseguem imprimir no máximo 2000 exemplares por tiragem, o que acaba
ocasionando elevação no preço ao consumidor. Elas têm qualidade mas não possuem
poder aquisitivo. Esses livros jamais estão nas vitrines das livrarias e nunca
figuram nas bancas dos livreiros nos eventos literários. Por um motivo bem
simples: dinheiro. Sim, o capitalismo selvagem destrói a literatura de
qualidade.
Existem no mercado brasileiro uma série de editoras que se
alimentam da ignorância de nosso povo, quando falo aqui de ignorância é aquela
intelectual mesmo. Essas editoras produzem na China uma quantidade sem fim de produtos
a preço de trabalho escravo. Normalmente são livros estereotipados, de menino
ou menina, de filmes da Disney ou outros sucessos do momento. O livro vira
apenas mais um produto. Não importa como foi produzido, como entrou no país, se
gera ou não direito autoral. O desconto que uma editora dessas pratica com um
livreiro é o mesmo que uma editora brasileira repassa ao seu distribuidor. Isso
acaba com a concorrência. Livros de alta qualidade literária, em nosso país,
raramente figuram nas vitrines das livrarias.
O Rio Grande do Sul é reconhecido nacionalmente por promover
eventos literários. São centenas de feiras, em municípios e escolas, que
ocorrem ao longo do ano. Normalmente autores de renome são convidados para marcarem
presença. No entanto, poucos organizadores se preocupam com a qualidade do
material ofertado ao público, o que se torna mais grave quando o evento
acontece em escolas, que deveriam estar atentas ao que é vendido aos
estudantes.
Portanto, quando uma instituição decide parar
para ler, discutir literatura e conversar com escritores, uma luz se acende no
fim do túnel, e talvez este seja o caminho: formar leitores críticos que
determinem o que deve ser oferecido pelos livreiros. O Tiradentes abriu um
precedente num país que lê pouco e mal. Essas iniciativas podem mudar a nossa
história. Que bom fazer parte dela.
Olá, Antônio! Meu nome é Paula Mastroberti, sou professora da UFRGS e estou escrevendo um artigo sobre Literatura Infantil e Juvenil. Preciso fazer umas perguntas pra ti mas não encontrei um contato. Como podemos fazer?
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