domingo, 27 de maio de 2012

Ao rés-do-chão - Um olhar para a poesia de Manoel de Barros






Manoel de Barros pode ser considerado um dos últimos autores vivos da antiga geração da qual faziam parte Oswald de Andrade, Guimarães Rosa - um dos mitos do poeta e do qual se tornou amigo - e Carlos Drummond de Andrade. Embora afirme pertencer cronologicamente a essa geração, o poeta possui uma marca registrada: a originalidade, o que o leva a afirmar: “Não sofri aquelas reações de retesar os versos frouxos e endireitar sintaxes tortas.” (Barros, 1990, p. 308)
Nasceu em 1916, em Mato Grosso, de onde saiu aos 8 anos de idade para estudar no Colégio dos Maristas no Rio de Janeiro, onde permaneceu no internato, no sentido lato da palavra, como declarou o poeta, numa de suas raras entrevistas, ao programa Fora do Eixo, da TV Educativa Regional de Mato Grosso do Sul em 2006[1], pois durante os 10 anos de estudos quase não saiu do colégio.
Visitava com frequência a biblioteca, onde entrou em contato com os clássicos e com o autor que chamou mais a sua atenção nesse período: Padre Antônio Vieira. O menino Manoel encantou-se com a forma como Vieira desdobrava as palavras em sua criação literária “Eu não gostava de refletir, de filosofar; mas os desvios linguísticos, os volteios sintáticos, os erros praticados para enfeitar frases, os coices na gramática dados por Camilo, Vieira, Camões, Bernardes – me empolgavam”. (Barros, 1990, p. 324)
Ao sair do internato, entrou para o Partido Comunista; residiu com um grupo de rapazes em uma pensão; foi acusado de pichação a um monumento público com alguns colegas de partido e, por causa disso, acabou sendo procurado pela polícia no local onde morava. A dona da pensão procurou demover o policial de sua tarefa, argumentando que aquele era um rapaz recém saído do colégio dos padres, que até escrevia poesia. Não restou alternativa senão entregar ao policial o manuscrito intitulado Nossa Senhora de minha escuridão. As primeiras poesias de Manoel de Barros estão perdidas, mas o livraram da prisão.
O desencanto com o partido surgiu do pronunciamento feito por Carlos Prestes em apoio ao governo de Getúlio, mesmo depois deste ter mandado a mulher do comunista, Olga Benário, de volta para a Alemanha como um presente para Hitler. Para Manoel de Barros foi uma grande desilusão, pois Prestes era tido como um herói.
As viagens pela América Latina serviram para que o poeta entrasse em contato com o sentido mais original e primitivo da vida humana em sua convivência com os índios colombianos e peruanos. Ao chegar a Nova York com seus museus, exposições e arquitetura, ele pode fazer um contraponto entre o arcaico e o erudito.
O poeta viveu no Rio de Janeiro por 40 anos, durante esse tempo, formou-se em Direito e, ao voltar de viagens ao exterior, conheceu uma mineira chamada Stella, com quem se casou e teve três filhos.
Ao assumir a fazenda do pai no Pantanal, Manoel de Barros isolou-se completamente e ficou esquecido da crítica e do mundo literário até meados da década de 80, quando Millôr Fernandes começou a publicar alguns poemas do matogrossense nas colunas dos jornais aos quais escrevia.
A sua timidez é um dos argumentos principais para manter certa distância da mídia. As entrevistas concedidas, quase sempre, são por escrito.  Um dos raros momentos em que o poeta deixou-se gravar foi para o documentário Só dez por cento é mentira, realizado em 2008, pelo cineasta Pedro Cezar, no qual revela que tudo o que tem a dizer está nos seus livros, não pretende ser entendido e sua única obsessão é a poesia. Em entrevista publicada na Edição Especial de Gramática expositiva do chão, o autor ainda reafirma essa posição: “Poesia não é para compreender, mas para incorporar” (Barros, 1998, p. 37)
É quase impossível procurar saber o que realmente Manoel de Barros quer dizer com sua obra poética. O próprio autor afirma que “Poeta não tem compromisso com a verdade, senão que talvez com a verossimilhança”. (Barros, 1990, p. 316) (grifo nosso)
A matéria poética de Manoel de Barros é visível em toda a sua produção artística e se apresenta em elementos simples: latas, sapos, rãs, caracóis, pedras e inúmeras outras criaturas, animadas ou não, acabam aparecendo nas páginas de seus livros. Nos seus inúmeros cadernos de rascunhos, anotados a lápis, Manoel humaniza as coisas e os animais: “Os rios começam a dormir pela orla” (Barros, 1997, p. 60); “Sapo nu tem voz de arauto” (Barros, 1997, p. 61). Em sua obra Retrato do artista quando coisa, de 1961, encontramos a coisificação e a animalização do homem:
“Retrato do artista quando coisa: borboletas
Já trocam as árvores por mim.” (Barros, 2001, p. 11)
Manoel de Barros ainda está sendo descoberto por leitores e críticos. Já recebeu inúmeros prêmios por sua obra. Sua genialidade está em apanhar aquele cisco que, para a maioria não serve para nada, mas que, para ele, é mais importante que uma catedral:
“Vou deixando pedaços de mim no cisco.
O cisco tem agora para mim uma importância
de Catedral.” (Barros, 2010, p. 360)



Outra faceta do autor está em utilizar a fala das crianças e dos mais simples como matéria de poesia, como se vê no documentário acima citado que, em um trecho, narra a experiência de observação das coisas que seu filho João falava e que viravam versos em seus livros.
Outro grande personagem inspirador de Manoel de Barros, que também aparece no documentário, é Bernardo, um homem simples, que não falava, mas que se tornou lendário em seus textos, como bem expressa Berta Waldman na introdução de Gramática expositiva do chão: “O primeiro homem desta terra é Bernardo, aquele que “é muito apoderado pelo chão”, “que tem uma caverna de pássaros dentro de sua garganta escura e abortada”, que “com suas mãos aplaina águas”. (Barros, 1990, p. 27 – 28)
A complexidade e, ao mesmo tempo, a simplicidade direta de mostrar o esquecido, o deixado de lado, torna a poesia de Manoel de Barros instigante:
“O que é bom para o lixo é bom para a poesia”. (Barros, 2010, p. 147)
Diante de um mundo tão focado no tecnológico e no descartável, sua criação nos remete a um universo primitivo, num resgate ao intrinsecamente humano, ou seja, o barro, a água dos rios, o silêncio da mata, o contato com os insetos e demais animais:
“Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde
dos pássaros,
serve para poesia.” (Barros, 2010, p. 146)
 É impossível sair incólume depois da leitura de um dos seus mais de 20 livros. Sua arte é um deleite. É POESIA.


REFERÊNCIAS:




BARROS, Manoel. Arranjos para assobio. Rio de Janeiro: Record, 1998, 2ª ed.

BARROS, Manoel. Gramática expositiva do chão (Poesia quase toda). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990.

BARROS, Manoel. Livro de pré-coisas. Rio de Janeiro: Record, 1997, 2ª ed.

BARROS, Manoel. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010.

BARROS, Manoel. Retrato do artista quando coisa. Rio de Janeiro: Record, 2001, 2 ed.
CÉZAR, Pedro. Só dez por cento é mentira. Artezanato Eletrônico, 2008.