Manoel de Barros pode ser considerado um
dos últimos autores vivos da antiga geração da qual faziam parte Oswald de
Andrade, Guimarães Rosa - um dos mitos do poeta e do qual se tornou amigo - e
Carlos Drummond de Andrade. Embora afirme pertencer cronologicamente a essa
geração, o poeta possui uma marca registrada: a originalidade, o que o leva a
afirmar: “Não sofri aquelas reações de retesar os versos frouxos e endireitar
sintaxes tortas.” (Barros, 1990, p. 308)
Nasceu em 1916, em Mato Grosso, de onde
saiu aos 8 anos de idade para estudar no Colégio dos Maristas no Rio de
Janeiro, onde permaneceu no internato, no sentido lato da palavra, como
declarou o poeta, numa de suas raras entrevistas, ao programa Fora do Eixo, da
TV Educativa Regional de Mato Grosso do Sul em 2006,
pois durante os 10 anos de estudos quase não saiu do colégio.
Visitava com frequência a biblioteca,
onde entrou em contato com os clássicos e com o autor que chamou mais a sua
atenção nesse período: Padre Antônio Vieira. O menino Manoel encantou-se com a
forma como Vieira desdobrava as palavras em sua criação literária “Eu não
gostava de refletir, de filosofar; mas os desvios linguísticos, os volteios
sintáticos, os erros praticados para enfeitar frases, os coices na gramática
dados por Camilo, Vieira, Camões, Bernardes – me empolgavam”. (Barros, 1990, p.
324)
Ao sair do internato, entrou para o
Partido Comunista; residiu com um grupo de rapazes em uma pensão; foi acusado de
pichação a um monumento público com alguns colegas de partido e, por causa disso,
acabou sendo procurado pela polícia no local onde morava. A dona da pensão
procurou demover o policial de sua tarefa, argumentando que aquele era um rapaz
recém saído do colégio dos padres, que até escrevia poesia. Não restou
alternativa senão entregar ao policial o manuscrito intitulado Nossa Senhora de minha escuridão. As
primeiras poesias de Manoel de Barros estão perdidas, mas o livraram da prisão.
O desencanto com o partido surgiu do
pronunciamento feito por Carlos Prestes em apoio ao governo de Getúlio, mesmo
depois deste ter mandado a mulher do comunista, Olga Benário, de volta para a
Alemanha como um presente para Hitler. Para Manoel de Barros foi uma grande
desilusão, pois Prestes era tido como um herói.
As viagens pela América Latina serviram
para que o poeta entrasse em contato com o sentido mais original e primitivo da
vida humana em sua convivência com os índios colombianos e peruanos. Ao chegar
a Nova York com seus museus, exposições e arquitetura, ele pode fazer um
contraponto entre o arcaico e o erudito.
O poeta viveu no Rio de Janeiro por 40
anos, durante esse tempo, formou-se em Direito e, ao voltar de viagens ao
exterior, conheceu uma mineira chamada Stella, com quem se casou e teve três
filhos.
Ao assumir a fazenda do pai no Pantanal,
Manoel de Barros isolou-se completamente e ficou esquecido da crítica e do
mundo literário até meados da década de 80, quando Millôr Fernandes começou a
publicar alguns poemas do matogrossense nas colunas dos jornais aos quais
escrevia.
A sua timidez é um dos argumentos
principais para manter certa distância da mídia. As entrevistas concedidas,
quase sempre, são por escrito. Um dos
raros momentos em que o poeta deixou-se gravar foi para o documentário Só dez por cento é mentira, realizado em
2008, pelo cineasta Pedro Cezar, no qual revela que tudo o que tem a dizer está
nos seus livros, não pretende ser entendido e sua única obsessão é a poesia. Em
entrevista publicada na Edição Especial de Gramática
expositiva do chão, o autor ainda reafirma essa posição: “Poesia não é para
compreender, mas para incorporar” (Barros, 1998, p. 37)
É quase impossível procurar saber o que
realmente Manoel de Barros quer dizer com sua obra poética. O próprio autor afirma
que “Poeta não tem compromisso com a verdade, senão que talvez com a verossimilhança”. (Barros, 1990, p. 316) (grifo nosso)
A matéria poética de Manoel de Barros é
visível em toda a sua produção artística e se apresenta em elementos simples:
latas, sapos, rãs, caracóis, pedras e inúmeras outras criaturas, animadas ou
não, acabam aparecendo nas páginas de seus livros. Nos seus inúmeros cadernos
de rascunhos, anotados a lápis, Manoel humaniza as coisas e os animais: “Os
rios começam a dormir pela orla” (Barros, 1997, p. 60); “Sapo nu tem voz de
arauto” (Barros, 1997, p. 61). Em sua obra Retrato
do artista quando coisa, de 1961, encontramos a coisificação e a
animalização do homem:
“Retrato do artista quando coisa:
borboletas
Já trocam as árvores por mim.” (Barros,
2001, p. 11)
Manoel de Barros ainda está sendo
descoberto por leitores e críticos. Já recebeu inúmeros prêmios por sua obra.
Sua genialidade está em apanhar aquele cisco que, para a maioria não serve para
nada, mas que, para ele, é mais importante que uma catedral:
“Vou deixando pedaços de mim no cisco.
O cisco tem agora para mim uma
importância
de Catedral.” (Barros, 2010, p. 360)
Outra faceta do autor está em utilizar a
fala das crianças e dos mais simples como matéria de poesia, como se vê no
documentário acima citado que, em um trecho, narra a experiência de observação
das coisas que seu filho João falava e que viravam versos em seus livros.
Outro grande personagem inspirador de
Manoel de Barros, que também aparece no documentário, é Bernardo, um homem
simples, que não falava, mas que se tornou lendário em seus textos, como bem
expressa Berta Waldman na introdução de Gramática
expositiva do chão: “O primeiro homem desta terra é Bernardo, aquele que “é
muito apoderado pelo chão”, “que tem uma caverna de pássaros dentro de sua
garganta escura e abortada”, que “com suas mãos aplaina águas”. (Barros, 1990,
p. 27 – 28)
A complexidade e, ao mesmo tempo, a simplicidade
direta de mostrar o esquecido, o deixado de lado, torna a poesia de Manoel de
Barros instigante:
“O que é bom para o lixo é bom para a
poesia”. (Barros, 2010, p. 147)
Diante de um mundo tão focado no
tecnológico e no descartável, sua criação nos remete a um universo primitivo,
num resgate ao intrinsecamente humano, ou seja, o barro, a água dos rios, o
silêncio da mata, o contato com os insetos e demais animais:
“Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde
dos pássaros,
serve para poesia.” (Barros, 2010, p.
146)
É
impossível sair incólume depois da leitura de um dos seus mais de 20 livros.
Sua arte é um deleite. É POESIA.
REFERÊNCIAS:
BARROS, Manoel. Arranjos
para assobio. Rio de Janeiro: Record, 1998, 2ª ed.
BARROS, Manoel. Gramática
expositiva do chão (Poesia quase toda). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1990.
BARROS, Manoel. Livro
de pré-coisas. Rio de Janeiro: Record, 1997, 2ª ed.
BARROS, Manoel. Poesia
completa. São Paulo: Leya, 2010.
BARROS, Manoel. Retrato
do artista quando coisa. Rio de Janeiro: Record, 2001, 2 ed.
CÉZAR,
Pedro. Só dez por cento é mentira. Artezanato Eletrônico, 2008.